Quando entrei naquele banheiro de hotel eu não podia imaginar o que me esperava. O sujeito havia escorregado no box a ponto de seus pés voarem por cima de sua cabeça, bateu a nuca no chão, e morreu na hora. Estava eu indicando o caminho da luz para o pobre-coitado quando dois seguranças, com crachás da Globo, entraram no quarto e me interpelaram cheios de marra. Queriam saber quem eu era, o que fazia ali,o de praxe. Respondi aos dois de forma apocalíptica com a minha voz metálica ribombante:
– Eu sou a MORTE! O Onipresente! O Implacável! O Todo-poderoso do destino! Ninguém manda em mim!
– Pffff! – rebateu o segurança – Você diz isso porque não conhece o Boninho!
Fiquei sem entender. Quem era Boninho? Os dois não me responderam e me ergueram pelos braços. Levaram-me até a presença daquele ser supremo, pelo menos parecia ser, que estava no saguão do hotel. Boninho já estava de ovo virado e me botou o dedo na cara.
– O que você fez com o Kleberson?
– Quem é Kleberson?
– A nossa melhor aposta no BBB desse ano. Alto, bonito, burro como uma porta, mas já tinha garantido duas capas da G Magazine quando saísse. E agora ele está morto por sua causa! Você estragou tudo!
Justifiquei dizendo que eu não sabia que o cara era um BBB confinado num hotel. Aquele era o meu trabalho e eu não podia fazer mais nada. Meu serviço é só buscar a encomenda. Que ele reclamasse com quem fazia os pedidos, ou seja, Deus.
– Eu não me rebaixo a ninguém! – disse Boninho – Eu quero um novo participante para o meu show agora!
Juro que pensei em dar uma ceifada ali e acabar com aquele moleque mimado. Mas uma assistente de produção, uma gordinha de head-set e prancheta na mão, sussurou algo ao ouvido de Boninho que reagiu como quem acabasse de descobrir que é herdeiro do Eike Batista. Ele abriu os braços e se aproximou de mim sorrindo. Fez uma proposta: que eu substituísse o Kleberson. Afinal eu também era alto, carismático, magro, bem magro, o que me garantia ficar bem diante das câmeras e que eu poderia ser o “diferencial” do BBB naquele ano, já que o programa é sempre a mesma merda e o hermafrodita argentino da temporada anterior havia sido um desastre. Eles nunca tiveram um ser do além na casa e eu poderia trazer frescor ao programa.
Obviamente eu disse não. Expliquei-lhe que sou um ser transcedental, uma entidade divina, que dá sentido à toda e qualquer forma de vida. Eu não iria largar tudo pra participar de um miserável joguinho humano de vaidade e cobiça onde tudo cheira a marmelada. Boninho então me prometeu que eu ganharia um Fiat Palio Weekend na primeira semana.
Topei na hora.
Antes da produção tirar o meu Iphone, e me afastar do mundo exterior, consegui visualizar o meu perfil no UOL junto com o dos outros onze BBBs. Lá dizia que eu era “irascível, cruel, implacável, mas sexy, bem humorado e com sexualidade indefinida, talvez gay”. Já havia 174 comments embaixo da minha foto que ia do “eu pegava” a “tem cara de viado mesmo”. Não gostei nada daquilo. Mas me disseram que fazia parte do jogo.
No dia seguinte saímos eu e os outros onze BBBs na carreata pela cidade até o Projac. Já ali rolou um stress. Boninho ficou puto quando aproveitei para liquidar dois motoboys no caminho. Pedi desculpas, disse que eu estava só adiantando um serviço pra quando eu saísse, mas ele não quis saber e me deu esporro assim mesmo, na frente dos outros. Fiquei com lágrimas nos olhos.
Chegando na casa, mais problemas. Ninguém queria ficar no mesmo quarto que eu. Discussão pesada. O Boninho teve que mandar todo mundo calar a boca pelo sistema de áudio. Senti um clima pesadão pro meu lado. Ninguém me queria por perto ou puxava assunto comigo. Percebi que não iria longe naquele jogo se não tomasse alguma atitude. Foi o que fiz na primeira noite quando o Bial apresentou a gente para todos os espectadores brasileiros. Soltei o verbo ao vivo.
– Ô, Bial, eu não ia falar nada, mas sou uma pessoa muito franca e costumo falar o que penso. Ó, eu sinto uma certa implicância comigo aqui dentro e gostaria de deixar claro para o público que eu não sou esse ser terrível que estão tentando pintar.
– Cara, você é a MORTE! – disse Nathalie, uma loirinha com cara de vagabunda que dividia o quarto comigo – Eu não sabia que esse programa aceitava esse tipo de… gente, ou sei lá eu o que é você. Tem que ver isso aí, Bial!
Respondi no ato:
– Fica na sua, Nathy! Se não você sai dessa casa pelo lado de cima, se é que você me entende.
Iniciamos uma pequena discussão, mas Bial botou panos quentes e nos acalmou. Ele aproveitou pra citar Fernando Pessoa. Ele falou que “navegar é preciso, viver não é preciso” e que eu apenas seguia isso ao pé da letra. Achei profundo.
Nos dias que se seguiram o clima não melhorou. Quando começaram as provas de resistência, ganhei todas. Como não tenho fome, nem sede, e não preciso ir ao banheiro nunca, pra mim é moleza ficar trancado dentro de carro, preso em gaiola, de cabeça pra baixo, a merda que for. Em uma semana eu já tinha ganhado um Corsa, duas máquinas da Brastemp, e dois anos de compras nos Supermercados Guanabara.
Isto me fez sacar que eu era o candidato mais forte, literalmente. O único que poderia tirar o prêmio de minhas mãos era Renato, um veterinário gaúcho simpático, altamente carismático, que trabalhava em uma ONG para salvamento de animais. Mas, felizmente, ele teve um AVC no terceiro dia e morreu de modo fulminante. Todos os outros BBBs me acusaram de manipular o jogo e eu disse que não mandava no destino, Renato morreria mesmo de derrame, e que o fato de eu ter adiantado sua morte em apenas 18 anos era só um detalhe.
O ódio dos outros concorrentes só aumentava. Quando pela primeira vez tirei a minha túnica para nadar na piscina, Gabrielly, uma baiana que já tinha transado com três caras ali dentro, inclusive um câmera, disse que eu estava nadando nu só para me mostrar. E eu disse que tava nem aí, que o que era bonito era pra ser mostrado. Leocádia, uma ex-modelo gaúcha e anoréxica disse que eu era só osso. Eu respondi: olha quem fala! Discutimos feio na piscina. Quem acompanhou no pay-per-view viu quando rolamos de porrada na grama.
Óbvio que tudo isso teria um preço. No primeiro paredão o pessoal foi implacável comigo: todos votaram para me tirar dali. Ganhei dez votos, o único que não votou em mim fui eu. O troço foi tão chato que o outro concorrente do paredão foi escolhido no zerinho ou um. Acabou sobrando comigo o Julius, um lutador de jiu-jitsu cujo cérebro havia morrido em 2004, mas ele não sabia disso ainda.
Ao mencionar o cérebro de Julius, Bial aproveitou pra citar Manoel de Barros e disse que “Morrer é uma coisa indestrutível”. Achei profundo.
Seguiram-se dois dias de tensão e fofoquinhas dentro da casa. Numa festa lá eu enchi a cara e disse que se eu saísse dali na votação levaria todos comigo. Gerei um momento de pânico. Os BBBs tentaram fugir pulando os muros e pedindo socorro para a produção, mas eu disse que estava me referindo à casa, e não a vida deles, porra. Boninho, pelo áudio, me proibiu de fazer qualquer referência à morte ou usar verbos como “empacotar”, “falecer”, “carregar” por ali. Depois me mandou tomar no cu. Sinceramente? Afinei. O cara bota moral.
No dia do resultado do paredão, o mico: Bial estava no meio das duas arquibancadas, uma lotada com a torcida da família e de amigos de Julius e do outro lado apenas uma arquibancada vazia. Eu não tinha ninguém me esperando lá fora, o que era uma coisa meio óbvia, mas ainda assim fiquei meio chateado. O bom é que foi por pouco tempo. Porque quando saiu o resultado da votação do público, veio a grande surpresa da noite. Apesar de eu ser o mais odiado, votaram pela saída do Julius. Eu vibrei como um louco, pulei no sofá, comemorei feliz. Urrú!
O que incomodou todo mundo foi a porcentagem: Julius teve 100% dos votos pra sair da casa. Num primeiro momento pensei “puta cara sem carisma, hein?”. Mas não era nada disso. Boninho então percebeu a cagada de me botar ali: podia rolar vinte paredões que o público JAMAIS votaria para que eu saísse da casa. Afinal, melhor a Morte presa em algum lugar do que trabalhando por aí. Resumindo: eu já era o vencedor daquela edição por antecipação.
O resultado foi a previsibilidade do jogo e consequente queda da audiência. Os anunciantes sumiram. Boninho me chamou num canto e disse que eu tinha que tentar reverter aquilo. Sei lá, dizer para os telespectadores que todo mundo que visse o BBB ganharia alguns anos de vida, ou algo assim. Eu disse que não podia fazer isso e que queria continuar na casa. Boninho então, como sempre puto, disse que iria fazer de tudo pra me tirar dali. Dei de ombros, estava nem aí. Esse negócio de fama mexe com o ego da gente.
Uma semana depois, eu estava brincando embaixo do edredon com Luara, uma psicóloga que também era garota de programa, quando tocou o Big Fone. Disseram que era pra mim e quando atendi tomei um choque: do outro lado da linha estava nada mais nada menos do que DEUS.
O Criador me enquadrou. Disse que não havia me posto no mundo pra ficar de boresta num programa de TV e que eu tinha muito trabalho atrasado fora da casa. Eu deveria sair o quanto antes. Fiquei furioso, reclamei, mas obedeci. Sumi da casa. Fui substituído por Lucas, um gorila depilado, mas a produção o apresentou como ex-lutador de UFC e dono de uma barraca de coco na Barra.
Para justificar minha saída, Bial citou no ar o poeta italiano G.G. Belli “Agora a morte está escondida nos relógios”. Achei profundo.
O público que acompanhava odiou, claro, mas aquela edicão do BBB (nem lembro qual) voltou a pasmaceira normal de todas as outras. Eu voltei ao meu trabalho rotineiro, mas ainda intrigado: por que Deus tinha que se meter naquilo? Duas semanas depois fiquei sabendo a resposta: o Boninho enviou para o Todo-Poderoso uma caixa de Chateau Lafite, o melhor vinho da adega do Boni.
Sério, eu sabia que BBB era meio marmelada. Mas nunca imaginei que pudesse chegar a esse nível.